Thursday, June 17, 2010

Status quo FDLiano

     
     Inicio a actividade deste blogue (suspensa desde tempos imemoriais) no dia em que são conhecidos os escandalosos resultados do exame de admissão à Ordem dos Advogados. A ofensa preocupante dos números e as afirmações do Bastonário da mencionada Ordem causaram o espanto do meu eu pouco iluminado, e trouxeram velhas eternas questões. Qual o estado do ensino superior português? Como vive a Justiça neste país? Que profissionais temos hoje no mercado? Culpa-se Bolonha pelos desaires da actualidade, mas na verdade essa é uma mera fuga para desculpabilização de erros institucionais. Se hoje se prestassem a exame advogados com 5 anos de licenciatura, estou certa de que o resultado divergiria muito pouco, chocantemente pouco, justificando em muito a fraca qualidade técnica dos acórdãos e alegações com que todos (os que se integram no meio) nos deparamos diariamente. Universidades sem qualidade de funcionamento proliferam, cursos de Direito brotam por todo o lado em partos de coelhos, competitividade agressiva e sem escrúpulos é o pão nosso de cada dia, e as cábulas continuam a ser garantia de passagem. O problema é antigo, é perene, talvez mais arriscado com Bolonha, mas parece que ninguém se pergunta porquê. Hoje apresento-vos a minha versão desta História, desta novela mexicana que é o meu lar intelectual há algum tempo, essa Faculdade digna de vénias e referências, longe das Universidades brinde de Bolo Rei que supra referi: a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

     Esta é a história de uma antiga Academia. Na verdadeira acepção da palavra, em tempos idos a FDL foi (pasmem-se) uma Academia, local de desenvolvimento de capacidades, formação, investigação e debate científico. Por tais motivos, a FDL alcançou o estatuto de que hoje ainda beneficia, ostentando orgulhosamente esse distintivo de qualidade pedagógica. A FDL está, contudo, e desde sempre, orgulhosamente só. Os entraves ao progresso, o conservadorismo, as notas que são para os professores e só a custo se atribuem aos alunos mais esforçados, o acarinhar dos antigos bufos da PIDE, o virar a cara às repressões antigas e às novas formas de opressão. A FDL foi sempre palco de contradições e, em mim, fonte de enorme revolta. Todavia, ainda que com alguns problemas endémicos, o profissionalismo e a potencial exigência eram inegáveis. Não o são hoje.

     Começa a nossa história com o revolucionário método progressista, seu nome tantas vezes tomado em vão!, processo de Bolonha. Concorde-se ou não com esta medida europeia, o objectivo era a unificação dos sistemas de ensino superior, permitindo a mobilidade, e a formação para a nova realidade mundial, de forma até mais adequada à essência humana: desenvolvimento de competências pessoais dentro de uma área. Ideia que não colheu adeptos entre os nossos académicos FDLianos. Cem cães a um osso por uma cadeira que não seja opcional (parece trazer um estatuto inferior, e, sem que eu saiba como, talvez implique um decréscimo remuneratório, tamanho o arreigar dos Doutores à sua “menina dos olhos”), semestralização meramente fictícia, a mesma matéria e nenhuma escolha para que cada um forme o seu percurso dentro da área jurídica (“perdoai-os senhor, eles não sabem o que fazem”, demasiado novos para escolher a sua vida, demasiado novos para contestar a posição do Senhor Doutor, perfeitamente adultos para a reverência de autómato e a competitividade de cães de luta). E que opções temos afinal? Disciplinas em que a exigência se reduz para metade, em que se classifica através da análise de blogues ou trabalhinhos (com exigência duvidosa na aferição do seu rigor), regras distintas das restantes matérias leccionadas nesta Casa, dado que não se trata da livre apreciação do Professor no método de avaliação contínua, mas antes um dispensar de exame que, com o tempo que se tem para corrigir trabalhos, é quase uma passagem administrativa. Não obstante, nada disto se mostra chocante perto de outras práticas quotidianas. O primeiro ano do curso de Direito é hoje espaço de lavagem cerebral (e neste ponto difere pouco dos longínquos tempos de glória). Persiste Paulo Otero na vanguarda deste peregrino movimento de “educação de massas”, qual líder a que se preste culto, encantando com a sua forma simples e esquemática de explicar conteúdos, iludindo o comum mortal quanto à sua relevância. Paulo Otero ultrapassa todas as marcas com a elaboração de um teste em que faz clara alusão a uma Lei recente e a insulta de forma ajurídica, os alunos revoltam-se, brota o escândalo nacional, e na FDL nada acontece, “livre discricionariedade do docente”. Por absoluta coincidência o teste seguinte, além de uma hecatombe classificativa, é de um nível de exigência praticamente inacessível até a alunos do terceiro ano. Curiosa sequência. O que faz a massa estudantil da FDL? Nada. E como incentivá-los a fazê-lo se vêem crescer a impunidade à primeira tentativa? João Pedro Marchante disse-me uma vez que se queria justiça estava no local errado, Letras seria o meu mundo. Parece que actualmente todo o corpo docente é feito à imagem deste visionário. Como crer no sistema judicial se é na Faculdade que se educa a desrespeitá-lo, a ser-se individualista, a desacreditar na Justiça, a promover o imediato bem próprio em detrimento do bem comum, a ficar impávido perante a injustiça e a corrupção vendo-a vencer todas as batalhas? A FDL é hoje um antro. Reduz-se a qualidade de ensino tanto no primeiro como no segundo ciclos. Dou  três exemplos: a disciplina extra-curricular de Medicina Legal é, apesar da enorme qualidade das aulas leccionadas pelos Professores da Faculdade de Medicina e pelos técnicos do INML, vista com tal leviandade, que é permitido que assistentes comam sushi durante a vigilância do exame, que os mesmos declarem que "ninguém tem menos de 10 e ninguém tem mais de 13", que o estatuto de avaliação seja dizimado no próprio acto de feitura do exame, durante o qual alunos gritam perguntas e respostas, num ensurdecedor tumulto desconcertante, sem que os assistentes se preocupem em desempenhar a sua função de examinadores; nos mestrados profissionalizantes não se permite que alunos com média inferior a 12,5 façam melhorias (pergunto, não seriam os que mais delas precisam?!), no entanto, transita-se para a fase de elaboração de tese com média de 10 (impressionante estímulo ao trabalho!); na disciplina de Filosofia do Direito, leccionada pelo digníssimo Presidente do Conselho Directivo, não há aulas práticas, não se fala sequer de Filosofia, desenvolvem-se conversas de café sobre temas como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que o Professor afirma tratar-se de “uma brincadeira de crianças para ver quem fica com o melhor brinquedo”. O rigor impera. Aumenta ainda em atitudes como a de Eduardo Vera-Cruz Pinto que não só mal dá aulas como se esquece do momento de avaliação máximo, o teste, e portanto o entrega para que o desenvolvam em casa. Ninguém tem menos de 13 e pessoas que costumam ter 5 têm 15 e pessoas com média de 15 têm 13, é no mínimo suspeito se considerarmos que estes últimos contestaram a posição do Exm.º Prof. Mas a crise não termina com este expoente máximo da incompetência, parcialidade, laxismo e facilitismo de um novo curso que vem como brinde nas caixas da Farinha Amparo. Deixam ainda de existir fases de exames espaçadas e torna-se insustentável para qualquer aluno ter notas decentes em exames, e, pior, para muitos impossível sequer chegar a exame oral de passagem! Solução encontrada? Que se dispense de oral com 12 em época de recurso. Promoção da desigualdade relativa, e, ademais, naive pensar que quem nem o 10 quer dar dará o 12. Pior, é uma vitória esta fase sequer existir após tantas tentativas para a destronar. Não conheço uma única Faculdade europeia que não tenha duas fases de exames para TODOS os alunos. Mais, as melhorias estão actualmente limitadas a 4 cadeiras por época e só as feitas em fase imediatamente anterior, diversamente do que ocorria nos meus tempos de caloira. E não se iludam, caros colegas das médias de 18, é com esta fase que vocês alcançam tão brilhante classificação! A ninguém aproveita a redução do brio educativo da Faculdade, mas também não beneficia o fim das múltiplas oportunidades de exame e suas garantias.
     A Faculdade que contestava, mas a que ainda sentia algum orgulho em pertencer, morreu. Todos os dias tentam matar-me a vontade de lutar pelo seu reavivar e, assumo, quase conseguiram. Mas penso nas gerações vindouras, penso em quem já lá entrou sem saber ao que vinha, penso no futuro das Faculdades públicas (por este andar haverá um êxodo para as privadas, descrédito das públicas, e menores oportunidades para os menos abastados), penso na formação da massa crítica deste país, em quanto precisamos de profissionais qualificados que não emigrem para países mais evoluídos. Portugal é condenado à mediocridade todos os dias em Faculdades semelhantes à nossa. E eis que, entre tanta verborreia de meros tradutores de pensadores alemães (pois parece que a função dos académicos deixou de ser a reflexão), se destrói o sonho de Pessoa, e a grande nação portuguesa, o quinto império tão almejado, adormece em seu túmulo, trazendo-nos um pouco mais do saudosismo amorfo que caracteriza a nossa colectividade. Acho que é de saudade, e de História, que a FDL viverá, decrépita e moribunda hoje, esquecida e mencionada como elemento quase bíblico num futuro próximo. 

Wednesday, June 11, 2008

Big Bang

O Microcosmos que aqui se analisa, se pensa, se discute, é esse espaço humano saudosista, essa imensidão de gentes que se cruza conosco e que somos, essa massa humana, uma espécie, uma humana raça, todos nós.

Sob que prisma se comenta o que o quotidiano nos mostra? Pela ideia de quem escreve, pela evolução sempre constante do escritor. Cumpre por isso esclarecer que este vê o mundo pela perspectiva da necessidade de o fazer reflectir, mudar por dentro os vícios que enformam o seu porvir. A revolução das almas é o que almeja, independentemente da forma que se escolha, com o fim último de promover a igualdade. Assim, pensa-se de forma semelhante ao texto abaixo transcrito, e esclarecidos que ficarão os leitores, em breve terá início essa correria de tinta a que espero que respondam, nesta construtiva crítica que nos faz remexer por dentro e por isso crescer.

SER DE ESQUERDA não é ter lido muitos livros nem mastigado ideologia. Ser de esquerda não é uma atitude face à privação e ao sofrimento. Não significa ter compaixão, (já) não significa ter resistido à ditadura. Ser de esquerda é a capacidade de acreditar que o mundo só muda e só pode mudar porque a riqueza nele existente e criada não pode estar desigualmente distribuída. E a capacidade de acreditar que dadas as mesmas oportunidades a todas as pessoas, as pessoas não se comportam da mesma maneira face a essas oportunidades. Umas são bem sucedidas e outras falham e as que falham têm de ser ajudadas. E, por fim, a capacidade de acreditar que todos podemos e devemos mudar o mundo nesse sentido. Esta simplicidade de panfleto romântico não implica partidos nem religiões, clubes ou associações. Não se é de esquerda por se ser socialista, é-se socialista por se ser de esquerda.

A liberalização dos comportamentos, as questões éticas e estéticas, a maior ou menor rigidez social, a crença no futuro radioso e a estima pelas utopias são ornamentos àquele edifício de ideias, não são a fundação. O egoísmo contra o altruísmo social ainda não foi apropriado nem reclamado com sucesso pela direita, que sabe o que lhe convém. Numa democracia civilizada e europeia como a portuguesa este tipo de dicotomia parecia ter deixado de fazer sentido. A direita, também ela civilizada e moderna, reclama uma forma de regular os assuntos humanos assente nos princípios do liberalismo económico e do mercado e da livre oportunidade, retirando o Estado da sua função principal, a redistribuição igualitária da riqueza e a promoção de uma sociedade mais justa e equilibrada.

Os últimos anos de expansão económica e bem-estar e as vantagens da globalização e do mercado único europeu pareciam ter-lhe dado razão. Na verdade, a direita reclamava a condução dos destinos humanos através da bolsa e dos índices económicos mas governava-se à esquerda. Ou, pelo menos, governava-se à esquerda na Europa. Nem um único líder europeu de direita ousou desmantelar o aparelho do Estado em matéria social, privatizar completamente a justiça ou a segurança, a saúde ou a educação, as obras públicas e o poder local. Para todos os efeitos, os chefes políticos estavam de acordo em que o desmantelamento do Estado conduziria ao caos civilizacional e à barbárie e que o capitalismo internacional e a doutrina do dinheiro podem chegar para fazer viver alguns no conforto económico mas não chegam para esbater a linha ténue que separa o egoísmo do altruísmo. Oitenta por cento do Planeta vive na miséria.

Para aumentar a confusão, chefes da "nova esquerda" como Tony Blair vieram certificar o liberalismo e continuar a política das privatizações (transportes, recolha do lixo) mas, chegados ao dilema da extinção dos esquemas de protecção social, recuaram. Ninguém conseguiu dar cabo do Estado. Nem conseguirá.

Em Portugal, esta questão antiga do mais Estado contra menos Estado, reabilitada pelo PSD, continua a alimentar a polémica esquerda/direita. Num país pobre, falar na retirada do Estado dos sectores essenciais de regulação e de intervenção tem apenas um efeito: perder eleições. A discussão deveria centrar-se, até estarem "reunidas as condições ideais de produção", em saber como moralizar e reformar o Estado que temos e de que precisamos muito, num momento da história do mundo em que o capitalismo selvagem e o liberalismo económico mostram a incapacidade para resolver os problemas da comida e da energia e da sua produção e distribuição.

As multinacionais são isso mesmo, multinacionais, e o capitalismo global não cuida dos interesses dos povos, cuida dos interesses dos accionistas. Os políticos que elegemos cuidam dos interesses dos povos e, quando confundem o seu papel com o dos grupos económicos e começam a falar como empresas privadas, alardeiam ignorância e estupidez. Isso viu-se por cá quando Menezes, elevado a líder, começou a falar em transformar o partido numa "empresa" e encomendou uma frota de carros de vidros fumados e bilhetes de executiva para o "líder" e cortejo de assessores como forma litúrgica de demonstração de poder político. O ridículo mata. Hoje, só existe um modo de dar continuidade à discussão: saber que Estado e em que estado, sabendo que o Estado é o alvo da rapina mais infame no Portugal democrático. E saber que as privatizações prolongaram monopólios privados sem melhoria dos serviços nem do interesse público. Abre-se um jornal sério e não passa um dia sem que se saiba de mais um negócio do Estado em que o Estado, (in)explicavelmente, resolveu gastar mais do que devia e podia. Veja-se o caso do SIRESP, fede. Os partidos e seus boys, empresários e grupos apropriaram-se do Estado em proveito próprio, traficaram influências, construíram fortunas. E passeiam a impunidade perante a privação. A questão esquerda/direita torna-se irrelevante perante a confissão da rapina. Para as pessoas, não se trata de saber quem é mais de esquerda. Trata-se de saber quem vai pôr cobro à rapina agora que a crise veio demonstrar que o dinheiro não chega para todos, e que o Estado rouba os pobres nos impostos e serviços para criar novos-ricos. Este é o Estado das coisas e foi aqui que o Estado falhou: não se moralizou e desmoralizou-nos. E esta foi a grande derrota da esquerda.


Clara Ferreira Alves